Páginas

segunda-feira, 11 de julho de 2016

                       A História de Uma Vida

A casa era simples, com cobertura de sapé e rodeada de grandes pedras, de onde jorrava água pura e cristalina, devidamente direcionada dentro de bambus em forma de calha que iam até a casa, facilitando assim as tarefas diárias de Vô Simplício.
Junto à pequena horta, alguams árvores frutíferas serviam de abrigo a sabiás, canários e sanhaços, que enchiam aquela manhã de vida e harmonia.
- Que você quer na casa deste velho, alma boa? – Dirigiu-se a mim de forma natural e sincera.
- Bom dia. Que a paz de Deus esteja com o senhor! – respondi, ainda surpreso por minha presença ter sido notada com tanta facilidade.
- Que assim seja, meu filho. Que pode este velho fazer por você?
- Eu escrevo histórias, senhor Simplício, e venho até sua casa a pedido de Donana para lhe trazer o seu abraço e seu carinho e, aproveitando, peço ao senhor que conte a sua história para que eu possa passá-la ao papel.
- Não carece não, meu filho, a história deste velho aqui vai fazer muita gente chorar, mas se foi Donana quem pediu... Assente aqui neste toco enquanto faço um café e melhoro o fogo que o dia vai ser longo e nós vamos varar a noite. Este preto aqui não nasceu na senzala não, alguns negros tinham fugido e me levaram junto, só que dentro da barriga de minha mãe. Nasci lá pelas matas e quando tinha três meses a mãe voltou pro céu. Os negros do quilombo não queriam trabalho não; aí, me pegaram e colocaram na roça pra poder ser encontrado por outros! E fui, meu filho. Cresci, virei rapazola e casei com Donana, rapariga prendada, alma majestosa que trabalhava na cozinha da casa-grande. Donana me deu dois filhos, pra minha alegria, mas Deus achou melhor que eles não vivessem comigo não! Por malquerença de Sinhá Velha, Donana e as crianças foram trocadas por um lote de dez vacas parideiras. A dor, meu filho, foi tão grande, que fiquei aluado por muito tempo; então, sinhozinho mandou me trancar no paiol velho que ficava bem longe da casa-grande e colocou Mãe Perpetua, uma preta velha, ruim das vistas e descadeirada, pra morar na casa do paiol e tratar de mim até melhorar. Mãe Perpétua trazia todo o dia a comida e passava pelo buraco da parede. Eu estava com dezoito anos de vida e eles esqueceram de mim lá trancado por dez anos. Então, meu filho, foi quando aprendi as rezas pra curar doença ruim e pra afastar encosto de alma penada. No escuro, meu filho, aprendi a ver as almas, boas e ruins. Tudo isso foi Mãe Perpétua que ensinou pra este que lhe fala. Uma noite, meu filho, uma alma boa clareou o mundo deste velho e o paiol ficou iluminado que nem dia. Era Donana que vinha se despedir, pois o maltrato no trabalho duro fizeram ela adoecer e largar o corpo nesta terra. E ela me falou:
- Simplício, meu querido, alma de minha alma, não vim despedir-me de você não! Largo essa terra com muita dor no meu peito, mas não carrego rancor. Nossos filhos estão pelo mundo, nunca mais vi nenhum deles. Os protetores que vieram me buscar explicaram que nós dois, noutra vida, fomos Sinhô e Sinhá, e que hoje nós voltamos para pagar as contas dos erros, pois não éramos “flor que se cheira”.
- Me leve com você, alma de Donana, não me deixe trancado aqui mais não!
- Olhe, meu velho, você ficou trancado aí pra amolecer seu coração e aprender com Mãe Perpétua tudo o que você aprendeu. Nós vamos ficar juntos, mas você aí e eu aqui pra lhe ajudar, pois você  ainda vai viver muito nessa terra. Estão falando comigo que não está longe o dia  de você sair dessa prisão não! Hoje Mãe Perpétua não vai trazer o de comer, porque nós viemos aqui também pra buscá-la, ela já está com o tempo vencido na Terra. Ajoelhe, alma irmã da minha alma, vamos rezar pra Deus Nosso Senhor e agradecer a ele, pois já pagamos muitos dos nossos pecados! E no mais tardar em três dias você vai tomar sol direito. Os escravos já estão libertos, quase não há mais negro na corrente.
Então, ela ajoelhou-se junto de mim, colocou a mão na minha cabeça e rezou a oração mais bonita que já ouvi. E de tanto chorar acabei desmaiando! A barriga já estava doendo de fome e sede. Donana falou três dias e já estava fazendo três dias que eu não comia nem bebia, quando ouvi um tropel de cavalo chegando perto do paiol e então gritei: “Socorro pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo”. E pelo buraco da porta vi um moleque de maios ou menos dez anos montado em um cavalo sem arreios, que, de susto, partiu a galope pra depois voltar com três negros. Eles foram chegando devagar até ter certeza de que eu não era nenhuma alma penada e só então eles arrebentaram as correntes e me deram liberdade. Fiquei tanto tempo preso, meu filho, que desaprendi a lidar na roça e nem ordenhar vaca eu sabia mais! Então, meu filho, resolvi fazer aquilo que sabia e tinha aprendido naqueles anos todos de prisão. Tudo que Mãe Perpétua me ensinou e mais o que aprendi sozinho ia usar pra ajudar os outros. Então, subi a serra até o alto e encontrei este lugar aqui, onde, com a bênção de Deus e ajuda de Donana, junto com outras almas boas, vivo até hoje, livre da cadeia, mas preso às coisas da terra, onde ainda tenho muita conta pra pagar! Olha, alma boa, eu nem perguntei sua graça. 
- É Cornélio, meu bom velho, um seu criado.
- É melhor você colocar aí no papel que este velho nunca mais casou e que meus filhos ainda estão pelo mundo, mas não sofrem igual ao pai e a mãe deles não! Escreve também que Donana vem me visitar quase todo dia. Ela ajuda os que morrem e traz as almas deles pra descansar neste casebre antes de seguir viagem. Se acomode por aí, seu Cornélio, que este velho aqui já não aguenta mais segurar os olhos abertos.
Nesse momento, preferi me retirar e permitir ao bom velho a liberdade da intimidade de seu lar. (Espírito Cornélio Pires-Histórias Divertidas do Vô Simplício-Alceu C.Filho)